‘EU CAÇADOR DE MIM’… Amo esta música que ficou eternizada na voz de Milton Nascimento, a partir de seu álbum com o mesmo nome, lançado justamente no ano em que eu completava uma década de vida! Tem canções que são assim, nos marcam e tornam-se marcos em nossa vida!

Ao refletir sobre a temática de nossa revista LOGOS NOTÍCIAS deste mês, fiquei pensando neste contínuo vida-morte-vida, que se eterniza nas transformações imanentes e transcendentes às quais estamos expostos enquanto seres existentes, mas principalmente enquanto serem em devir, num vir a ser constante de transformações, mutações, desapegos e reconstruções… No embalo do Setembro Amarelo[1] com foco na prevenção do suicídio, e da temática de Valorização da Vida e da Saúde Integral, à qual dedicamos os artigos deste mês, senti-me impulsionada novamente para este poema cantado, e dando atenção a esta minha intuição de caçadora quero dialogar com Luiz Carlos de Sá e Sérgio Magrão, como se estivéssemos juntos em um bate-papo de amigos/terapeutas, em um diálogo que pode, quem sabe, ser transformador pra mim, e quiçá também para você que agora ‘me lê’!

Vamos ao diálogo…

 

Sá & Magrão: Por tanto amor, por tanta emoção, a vida me fez assim

Márcia: Entendo-vos tão bem! Reconheço em minha história de vida cada emoção vivida, boas e ruins, como marcos que me fizeram ser quem sou! Partes de mim que aceito, compreendo bem, outras que não aceito, rejeito e tantas que ainda desconheço… Sei que fui amada, sei que amei, sei que amo e sou correspondida! Entretanto são tantas as emoções vividas que por vezes me sinto também esquecida, preterida, não amada e não possuidora de amor para oferecer… Mas aqui e agora, entendendo que a vida me fez assim, vou tentando fazer às pazes com quem sou de forma mais plena e integral!
Sá & Magrão:  Doce ou atroz, manso ou feroz
Márcia: Isso mesmo! Vocês traduzem exatamente o que eu estava tentando falar: ambivalências! São esses antagonismos que habitam em mim que por vezes me deixam confusa! Como posso ser pessoas tão diferentes: doce e atroz, mansa e feroz?!? Quantas vezes sou considerada louca, desequilibrada, ou tantas outros adjetivos nada encorajadores, mas fico pensando – ‘serei eu a única no mundo a viver sentimentos tão opostos? Será um caso de dupla personalidade ou de transtorno bipolar?!’ – e por aí se vão os autodiagnósticos que em nada me apoiam! Mas é isso mesmo! Alguém me entende! (ou é maluco na mesma proporção que eu !!! kkkkkkk) Quando estou doce e mansa, esta sou eu, mas quando estou atroz e feroz, igualmente sou eu, e em ambos os lados da moeda eu sou livre para fazer de mim, por mim e para mim, o que for melhor para minha construção em busca de inteireza e de saúde! Eu tenho permissão para ter dentro de mim as cores de todas as emoções!

[1] Iniciado no Brasil pelo CVV (Centro de Valorização da Vida)CFM (Conselho Federal de Medicina)ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), o Setembro Amarelo realizou as primeiras atividades em 2014 concentradas em Brasília. Em 2015 já conseguiu uma maior exposição com ações em todas as regiões do país. Mundialmente, o IASP – Associação Internacional para Prevenção do Suicídio estimula a divulgação da causa, vinculado ao dia 10 do mesmo mês no qual se comemora o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio.

Sá & Magrão: Eu, caçador de mim.
Márcia: Ah!!! Este é o caminho então! Este é o segredo! Tornar-me uma audaz caçadora de mim mesma! Todos os caçadores possuem instintos extraordinários. Vejam os felinos por exemplo (Sempre penso em um grande felino quando me imagino caçadora de mim mesma! Talvez você queira se ver como um pequeno roedor, que também tem instintos aguçados para caçar suas presas, afinal, cada um tem a liberdade de se projetar como quiser! Rsrsrsr) Seus instintos incluem alta perspicácia, atenção aguçada, capacidade de foco, ligeireza em correr, destreza em se lançar para a presa, dentre tantos outros atributos! Nossa!!! EU TENHO INSTINTOS EXTRAORDINÁRIOS que me favorecem ser uma exímia caçadora! Caçar a mim mesma, conhecer minha essência, para então poder ser leal às minhas verdades!

 

Sá & Magrão: Preso a canções.
Márcia: Fico pesando no canto das sereias[1] que inebriam, entorpecem os marinheiros e assim, sem consciência de si mesmos e dos perigos à sua volta, se entregam à morte! É preciso ficar alerta para não nos prendermos a canções de morte, vozes que tumultuam nossa mente nos dando indicações incorretas sobre o que devemos fazer, para onde devemos ir, ou em quem devemos confiar!

 

Sá & Magrão: Entregue a paixões que nunca tiveram fim.
Márcia: Realmente, ficamos tempo demais aprisionados a certas paixões! Talvez por termos a tendência de sempre traduzir ‘Paixão’ por algo positivo (em especial no ocidente pensamos assim, e não que ela não tenha também este lado que pode eliciar e energizar o amor). Entretanto ficamos desatentos (talvez devido ao canto hipnótico das sereias) ao outro lado da paixão, que está muito bem expresso no entendimento da origem da palavra no latim: PAIXÃO = passio, cuja tradução seria algo como “sofrimento, ato de suportar”, de pati, “sofrer, aguentar”. Paixão por pessoas, paixão por objetos, paixão por situações, circunstâncias… Conectados emocionalmente e aprisionados nesta energia que nos faz sofrer. Como é difícil quebrar o encanto de uma paixão! Como é difícil voltar a ver a realidade tal qual ela é quando nos entregamos a este sentimento aprisionador! Bem diz o ditado popular ‘a paixão é cega’, ao qual eu acrescentaria: ela cega, ensurdece, entorpece. A paixão pode nos despersonalizar! É um perigo ao qual precisamos estar atentos!

 

Sá & Magrão: Vou me encontrar longe do meu lugar. Eu, caçador de mim
Márcia:  Como assim, ‘longe do meu lugar’? Que conversa doida é essa? Preciso de um tempo pra pensar… espere… parece que faz sentido! Se hoje estou aprisionada, para me encontrar de verdade, e me reconectar com minha essência preciso ‘me encontrar longe do meu lugar’. Mas que confuso! Eu existo para além deste espaço que hoje me parece único?! Existe um outro ‘eu’ para além deste Eu-sofredor que conheço neste tempo e nesse espaço?!!! Aqui sim, precisarei de TODOS os meus instintos mais primitivos de caçadora para encontrar o meu Eu-verdadeiro! Sair da zona de conforto que nem é assim confortável, mas que é a única realidade que conheço! Me aventurar… ir além dos muros da ilusão… acreditar que posso me encontrar!!!

 

Sá & Magrão: Nada a temer, senão o correr da luta
Márcia: Êita que agora complicou! Mas eu tenho medo!!! Temo tantas coisas! Parece impraticável esta ordem! Mas sei que não posso fugir da luta! E esta luta é por mim mesma! A luta por minha vida e por minhas verdades!!! Vou tentar!

 

Sá & Magrão: Nada a fazer, senão esquecer o medo
Márcia: Ah! Entendi! Não se trata de não ter medo, mas de esquecer o medo! Coragem não é ausência de medo, mas simplesmente a atitude de continuar caminhando independente do quanto este temor possa gritar dentro de mim! Minha ação ‘número 1’: ignorar os medos e seguir em minha busca!!!

 

Sá & Magrão: Abrir o peito à força numa procura
Márcia: De fato é deste desejo de encontrar, de conhecer, de romper, que nasce toda a força! Aqui e agora já posso senti-la dentro de mim! Estou pronta! Bem… não sei direito se estou pronta, mas como dizia ao brincar de pique-esconde ‘prontos ou não aí vou eu!!!’. Quero sair correndo à procura de mim mesma e de minhas verdades, porque em meu peito explode a caçadora com todos os seus instintos! Estou pronta!!!

 

Sá & Magrão: Fugir às armadilhas da mata escura
Márcia: Agora você falou como fala uma mãe (rsrsr) mas entendo sua recomendação, e terei cuidado! A mata escura são as nuvens de minhas próprias emoções que por vezes me dificultam ter uma visão racional e clara da realidade. Assim como é escura a sombra[2] que permeia meu eu, sobre a qual de fato não tenho nenhum poder, sendo o autoconhecimento e a autoanálise constantes minhas únicas garantias ao atravessar este espaço das sombras do inconsciente! Às vezes as armadilhas são construídas por outros que, por estarem tomados por suas sombras deliberam o mal! Bem… um caçador deve não apenas ter foco em sua caça, mas saber olhar atentamente ao redor: visão 360˚, olhar sistêmico! Se somos caçadores, por vezes somos também caça! Pode deixar, estarei atenta enquanto caço! Não posso fazer do ato de caçar uma nova paixão que me aprisiona e me deixa míope!

 

Sá & Magrão: Longe se vai sonhando demais
Márcia: Ah!!! Como são poderosos os sonhos! Eles não só alimentam nossa alma, como renovam o sentido de viver, criando em nós uma energia impulsionadora mais potente que se possa mensurar! E como eu sonho!!! Sonho que sou uma grande felina, forte, capaz, cheia de instintos que me tornam hábil para qualquer busca e resolução! Que alegria saber que irei longe. Quero ir além! Me entregar à jornada para a qual meu Self[3] tem me convidado! Realizar aquilo para o qual nasci e viver minha existência com uma caminhada capaz de gerar completude!

 

Sá & Magrão: Mas onde se chega assim?

Márcia: Sei que me entregar para a imensidão do Self gera muito medo! E deste medo vem a dúvida: ‘Mas onde se chega assim?!’ Esta dúvida e este medo que já paralisaram a muitos, também paralisaram a mim muitas vezes! A própria depressão às vezes funciona como uma caverna de esconderijo, um momento de recolhimento quando o desejo de fuga se torna maior que o desejo de enfrentamento! E de novo é hora de ‘Esquecer o Medo’, e ‘Não correr da luta’! Mas ‘onde  chegarei assim’, seguindo meus instintos de caçadora de mim mesma?! Bem, creio que chegarei ao caminho da minha individuação[4], um caminho de busca de completude, de autoaceitação, de reconhecimento de minhas fragilidades e meus potenciais, mas principalmente, chegarei a espaços e tempo onde seja possível construir saúde integral!

 

Sá & Magrão: Vou descobrir o que me faz sentir: Eu, caçador de mim!

Márcia: Mesmo?! É uma promessa?! Você tem certeza de que um dia eu vou descobrir o que desperta em mim este instinto de caçadora, de buscadora incansável de mim mesma?!!! Que bom! EU ACREDITO!!! Na verdade, depois desta nossa conversa tão terapêutica vejo e sinto que já entendo um pouco melhor este processo! Sei que sou uma caçadora e que com estes instintos que recebi de presente da natureza poderei fazer meus caminhos! Serão sempre desafiadores, porém sinto-me instigada a continuar! Comprometo-me a não fugir da luta. Desejo não ficar estagnada nas paixões que impactam negativamente minha percepção de realidade. Quero e vou fazer todos os dias as pazes como os vários ‘Eu(s)’ que habitam em mim, mesmo que sejam eles antagônicos e estranhos, até mesmo às vezes indesejáveis! Vou me aceitar mais e buscar conhecer cada vez melhor quem eu realmente sou, e quem eu quero ser nesta existência tão extraordinária que me foi dada de presente! EU PROMETO!

Obrigada!

[1] Do ponto de vista da análise do Mito, o canto da sereia representa a força de atração que atinge algo que está além das construções defensivas do ego, indo mobilizar diretamente poderosos aspectos inconscientes da personalidade, ultrapassando todos os contra-argumentos retóricos, morais e psicológicos. Essa força de sedução do som é capaz de tocar e despertar algo profundo, causando uma atração encantadora e irresistível que é parte essencial desse símbolo – a sereia – que representa a sedução arquetípica. O canto ou sedução da sereia pode ser arrebatador e mortal para o ego, porque o lugar da alma é o mundo da imaginação, o mundo dos sonhos para o qual o ego é irremediavelmente seduzido todas as noites.

Na análise de Adorno e Horkheimer (discutindo sobre a Dialética do Esclarecimento) o canto da sereia é uma das distrações que Ulisses (herói da Odisséia de Homero) tem que superar para voltar ao seu lar, e simbolizam a natureza exterior que precisa ser dominada, a partir da aprendizagem do autodomínio. Cada um dos desafios enfrentados pelo herói Ulisses indicariam o trajeto vivido pela humanidade no sentido de libertar-se da escuridão mítica e caminhar rumo ao esclarecimento, pátria de autoconservação e segurança.

 

 

[2] Para Jung, sombra “é a parte negativa da personalidade, isto é, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal”. Para saber mais leia o artigo de Lindomar Rocha na revista eletrônica LOGOS NOTÍCIAS (www.logosnoticias….iiis,..)

 

[3] Conforme Carl Jung, o Self, ou Si-mesmo, é uma imagem arquetípica do potencial mais pleno do homem, ou seja, da totalidade. Ele ocupa a posição central da psique como um todo e, portanto, do destino do indivíduo. Dele, emana todo o potencial energético de que a psique dispõe, sendo também o ordenador dos processos psíquicos, que integra e equilibra todos os aspectos do inconsciente, sendo também seu papel proporcionar, em situações normais, unidade e estabilidade à personalidade humana. O Self representa o objetivo do homem inteiro, a saber, a realização de sua totalidade e de sua individualidade, com ou contra sua vontade.

[4] De acordo com Jung, todo indivíduo possui uma tendência para a individuação ou autodesenvolvimento. “Individuação significa tornar-se um ser único, homogêneo, na medida em que por ‘individualidade’ entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si mesmo. Podemos, pois, traduzir ‘individuação’ como ‘tornar-se si mesmo'” (Jung, 1928, p.49). Individuação é um processo de desenvolvimento da totalidade e, portanto, de movimento em direção a uma maior liberdade.

“O processo psicológico da individuação está intimamente vinculado à assim chamada função transcendente, e esta função transcendente não se desenvolve sem meta, mas conduz à revelação do essencial no homem. O sentido e a meta do processo são a realização da personalidade originária, presente no germe embrionário, em todos os seus aspectos. É o estabelecimento e o desabrochar da totalidade originária que cada pessoa tem em potencial dentro de si”(Jung)

 

MÁRCIA CHRISTOVAM
PSICÓLOGA CRP 09/1891

• Neuropsicóloga;
• Psicopedagoga;
• Master Coach Treiner;
• Mestra em Ciências da Religião.
• E eterna caçadora de si mesma!