Análise do Filme “A Partida”

O filme nos apresenta deforma brilhante os dois pólos da vida: 

  • O belo, e desejável: representado pela arte, pela música.
  • O feio, o indesejável: representado pela morte.

O ator principal, Daigo vive em sua saga duas profissões: Musicista (todos admiram); Assistente Mortuário (discriminado na sociedade que está desprovida de suas origens devido à massificação a e coisificação capitalista. Tal coisificação fica inclusive representada pela forma de agir e pelo o modo como trabalham os assistentes funerários no final do filme).

O universo capitalista é dicotomizante, alienador e conseqüentemente esquizofrenizante. Por isso vivemos em um mundo doente e nos sentimos constantemente adoecidos.

Estamos alienados de nossos bens e até de nós mesmos. O que de fato é seu? O carro que comprou? Mas se não pagar os impostos? Estamos alienados de nossas verdades profundas: o outro é quem sabe sobre mim; o outro é quem tem poder de decisão e ação sobre mim. Não importa se esse outro é uma pessoa, uma instituição ou mesmo uma mídia, estamos cotidianamente debaixo dessa condenação, e chegamos a achar isso cômodo. Parece ser melhor não assumir decisões, deixar para o outro dar o veredicto é menos desafiador, mais confortável! 

Esta massificação capitalista com sua ideologia assolou até mesmo culturas milenares como podemos perceber nesse filme. Esta realidade se descortina não somente na expressão de desprezo aos ritos de passagem dos mortos outrora considerado tão honroso, mas também na discussão entre a dona da casa de banho e seu filho. A percepção que as novas gerações têm é de um trabalho cujo lucro venha obrigatoriamente com menor esforço (ele, o filho, é funcionário público). Assim ele tenta convencer sua mãe de fechar a casa de banhos tão tradicional na cidade, mas esta não concorda, pois está ainda comprometida com seu trabalho que considera uma missão de vida, e reconhece o valor de sua atuação para os moradores da cidade. Podemos perceber em sua fala a compreensão profunda de uma vida dedicada para um trabalho repleto de sentidos e significados profundos.

Este é um questionamento profundo para cada um de nós: ‘você reconhece o valor e o significado profundo do seu trabalho para a existência dos que estão a sua volta, e para a sua própria existência?’  

Dentre as dicotomias propostas pelo capitalismo uma das mais fortes está presente no trabalho, deixando este desprovido de seu sentido profundo. Vivemos o ‘fazer por fazer’: vazio! Tão vazio quanto o teatro no início do filme onde a orquestra se apresentava. 

O trabalho tem como fim último o lucro e não seu sentido profundo, revelador da alma que o realiza… Assim a orquestra é desativada, pois perdeu sua finalidade (o lucro), e conseqüentemente sua condição de sobrevivência. 

É interessante pensarmos que os objetos que compramos em sua maioria são “made in china”. São feitos em alta escala, produção de massa… mas o que é a massa se não um amontoado de pessoas que perderam o status de indivíduo? Objetos desalmados, e isto é tão verdade que nem importa que seja ele resultado da escravização de crianças, ou resultado do furto como ocorre em nossa terra prometida das peças automotivas mais baratas – ‘Canaã’, se o preço é bom… valeu… “tô dentro”!

A alma é o cifrão. Neste jogo o trabalhador desalmado adoece, e o comprador vende sua alma para adquirir melhores lucros em suas compras!

Este é nosso universo desencantado, onde o que nos resta é tomar um choque de realidade (quem sabe com a ajuda do seu self pode ser aqui e agora!) e sermos jogados para o feio e o desprezível, pois é lá que está sua chance de salvação!!! 

Qual é o seu ‘feio’, o seu ‘desprezível’, o seu ‘espaço nojento’? Quais são os conteúdos conflituosos que você tem evitado a todo custo? Pois é aí mesmo, neste espaço de desprezo e repulsa que está nossa chance de cura! 

No filme a postura do amigo de Daigo Kobayashi, de sua esposa e até dele próprio no início representam nossa repulsa diante desse encontro com o indesejado. 

A morte é uma imagem arquetípica que abarca todas as nossas mazelas. Tal repulsa fica extremamente evidente na cena de seu primeiro trabalho, quando tem que ‘tratar’ o corpo de uma mulher em decomposição há duas semanas. Toda a seqüência é rica em sentidos profundos do inconsciente. 

Primeiro a repulsa que é vivida no corpo com o desejo de afastamento, vômito, fraqueza, perda dos sentidos corpóreos, estado de confusão mental. Estas são as sensações que nos invadem sempre que somos tomados por nossos complexos. Este choque com os conteúdos advindos da sombra nos deixa perplexos, perturbados, confusos e embaraçados. São todas sensações vividas nas entranhas, são reações viscerais, que tem um impacto profundo em nosso corpo e mente.

 Na seqüência (Daigo dentro do ônibus se percebendo mal-cheiroso) o filme expõe a sensação e a percepção extremamente incomodante de estar impregnado pela fetidez. É o momento da consciência plena de nosso estado real. Este é outro estágio do processo de cura, mas trata-se de um momento no qual o indivíduo sente que está pior que antes, tem a impressão que teria sido melhor ficar no estado de alienação. Conectarmos-nos com as verdades profundas do nosso inconsciente é muito amedrontador, incomoda demais, é um grande desafio! Este é um momento psicoterápico de profunda conscientização de nossa condição de miséria. A repulsa ao cadáver se torna repulsa de si mesmo, do fedor que está impregnado na pele, no cabelo, nas narinas, e por que não dizer na própria alma. Este é um processo de identificação onde o pior do outro me remete ao meu pior. No primeiro estágio não suporto o outro, rejeito-o, mas neste segundo estágio tomo consciência de que o mal está em mim, não é mais o outro que me dá repulsa, e sim o que reconheço estar em mim mesmo.

Mas o lindo deste filme é nos relembrar que sem mergulhar na sombra é impossível emergir para a luz, e que ficar na alienação é viver na ‘matrix’, ou seja, viver em um espaço de mentira, de engodo. Mas nosso self não se engana e nos faz saber que no fundo algo está errado. As próprias doenças, assim como o sentimento de vazio existencial e a depressão como sua maior conseqüência vem como uma mensagem do sábio self para nos alertar e nos forçar a abrir os olhos para o estado de miséria existencial no qual nos encontramos, e que o processo de alienação e alheiamamento nos fizeram acreditar ser o espaço do normal.

Quem é capaz de enxergar esse engodo está na metade do caminho para a libertação, a outra metade dependerá da coragem de entrar em contato com sua própria sombra.

E foi justamente mergulhado na sombra da morte do outro que Daigo mergulhou em sua própria sombra revivendo o trauma do abandono: primeiro abandonado pelo pai; depois ele próprio abandonou a mãe e não esteve junto dessa nem nos ritos de passagem; então foi abandonado por seu sonho quando a orquestra fechou; foi abandonado pelo amigo e pela esposa; e quase abandonou o pai, mas em tempo fez o corte com este esquema podendo romper sua ligação obsessiva com ‘complexo de abandono’. 

Só ao realizar este corte consegue reencontrar seus reais sentimentos de infância, resgatar sua herança afetiva, suas memórias mais verdadeiras, profundas e saudáveis, registradas naquela pedra que dera de presente ao pai, e que fora reencontrada dentro da mão morta deste. Também ali reencontrou a lembrança perdida da face do pai podendo reconhecê-lo e reencontrá-lo. 

Reconhecer o outro é o caminho do auto-reconhecimento, e tal resgate é interessantemente percebido quando Daigo entrega a ‘pedra carta’ com o registro de seus sentimentos mais profundos ao seu filho, ainda na barriga de sua esposa. Aqui ocorre a passagem, ele está pronto para deixar de ser filho (visto que antes estava aprisionado emocionalmente, fixado como filho em busca do afeto de um pai) e se entregar a experiência de ser pai. 

O reencontro com seu pai permitiu o resgate de suas emoções representadas pela objetividade da pedra, havendo aí a liberação da energia aprisionada pelo trauma o que gera a libertação da alma também aprisionada de Daigo.

No filme tocar Violoncelo remetia justamente a um sentido profundo da alma de Daigo: sua ligação com seu pai. Esta ligação reflete dois importantes vínculos: o vinculo da aprendizagem e o vinculo afetivo.

Fora o pai quem lhe obrigara a aprender esta arte. Este é o papel central do arquétipo paterno: a imposição das regras. Sem as regras não é possível a aquisição de novos saberes, sequer é possível tecer os relacionamentos. Seu pai fora muito assertivo neste papel. Em seu novo trabalho se encontrou com um novo personagem paterno que acreditou em sua capacidade e lhe ensinou o nobre ofício, os ritos de passagem. Assim, nesta relação de confiança ele fiou uma nova experiência de vida, reencontrando no trabalho um sentido profundo para sua existência.

Mas seu passado também desvela uma relação de afeto profundo com seu pai, o que é revelado em dois momentos: o pai que com admiração o assistia tocando; a troca afetiva através das pedras com as quais se presentearam no leito do rio. O contato de admiração ocorre onde há o afeto que pode ser traduzido justamente como ‘afetar o outro através do próprio sentimento’. Fica claro que também a afeição estava presente em sua infância em um ambiente acolhedor e facilitador da construção de significados afetivos e existenciais profundos.

Foi revivendo suas origens que Daigo se reencontrou. Inclusive o violoncelo que o conduziu ao resgate de sua alma não foi aquele digno dos grandes tocadores cujo preço beira o inimaginável (hoje este instrumento pode custar acima de 35 mil reais), mas sim o de sua infância, aquele que lhe fora presenteado pelo pai, outrora abandonado no porão da casa também abandonada, cujo valor não era monetário, mas sim afetivo e, portanto carregado de significados profundos.

Interessante que na vida de Daigo tudo ruiu: perdeu seu emprego na orquestra, perdeu a capacidade de pagar um instrumento que estava carregado pelo significado coisificante do capitalismo (teve que pagar muito caro, pois este era o preço justo do instrumento digno de um grande tocador, e assim fica a verdade imposta pelo capital: ‘só pode ser bom o que tem a marca’), perdeu a capacidade de morar em um grande centro (Tókio)… Mas somente quando perdeu tudo pôde retornar as origens para encontrar a cura da sua alma. 

Voltou para a casa materna, espaço onde cada significado para si e para o mundo é construído, e ao mesmo tempo espaço onde as lembranças estão mais vivas em cada canto (a mãe não se desfez dos discos do pai – seu violoncelo de infância dado pelo pai, a pedra dada pelo pai que podia contar sobre os sentimentos desse pai). 

O retorno a casa da mãe tem uma representação de regressão, se bem que no filme essa é a tônica tanto subjetiva quanto objetiva, pois há uma regressão também de status. É preciso regredir, voltar ao útero, rever este período da construção dos significados através do belo e do feio vividos, através dos momentos bons, mas também dos momentos traumáticos… É preciso ceder espaço para atualizar as memórias, e voltar à casa da mãe é uma forma interessante de materializar este processo.

Daigo voltou também para sua cidade de origem, e o retorno às origens é uma forma de dizer: “olha este sou eu, sem máscaras, sem maquiagem, sem plásticas… Eu mesmo, original, não importa que formato tenha”. Não é fácil aceitar as origens, é um grande desafio! De certa forma perdemos cada vez mais a admiração pelo original, pois vivemos uma geração das reinvenções, uma geração que não admira, muito menos reverencia as origens. As mudanças correm no ritmo da tecnologia cibernética e mesmo os valores outrora irrevogáveis hoje têm a duração de um alimento perecível quando fora da geladeira… tudo é efêmero… até o “amor é eterno” somente “enquanto dure” (frase do célebre e belo poema que, apesar de encantadora, revela dessa tendência de fazer cortes cada vez mais drásticos com as origens, com o original, com o que pode ser perene).

Neste retorno para as origens ele entra em contato com a origem cultural de seu povo, uma tradição já quase perdida, outrora vivida e realizada pelos familiares dos mortos e agora outorgada a outrem: um estranho que em troca de dinheiro realiza o que era minha tarefa, até porque ao se afastar das origens afasta-se também mais uma vez do significado profundo de cada gesto. Neste caso toda uma geração de japoneses está se afastando do cuidado honroso de seus mortos. Ele próprio Daigo não estivera presente nos ritos do funeral de sua mãe, e tampouco conhecia tal tradição, e muito menos seu significado rico em construção de sentidos para a partida do morto, mas também para a continuidade da vida dos entes queridos que ficaram. Essa realidade foi mostrada no filme em vários momentos, e foi esta visão reveladora do sentido da vida e da morte desveladas neste rito de passagem que fez com que ele desejasse eleger esta como a ‘profissão de sua vida’.

Ao voltar para a o útero da mãe voltou a suas origens pessoais, podendo desvendar mistérios do seu inconsciente, e ao voltar para sua origem cultural pode desvendar mistérios do inconsciente coletivo. Com certeza deste mergulho Daigo pôde emergir com muitos símbolos que abriram portas elucidativas de sua existência. 

Quando ele assumiu que seu todo não se resumia a máscara que usava (o grande e famoso musicista), mas sim uma realidade outra, talvez nem tão desejável ou admirável assim (“Agora percebo como minha vida foi inexpressiva até hoje”), pôde emergir com sua verdade maior e se descobrir como um filho que nunca deixou de ser amado pelo pai. Realidade percebida quando se permitiu cuidar do corpo do pai, mesmo antes de reconhecê-lo como tal.

Este é o convite deixado para nós pelo filme “A Partida”… Um convite para com coragem revermos nosso estado atual, reconhecendo nossa percepção míope e tacanha acerca e uma realidade construída e mediada pelos processos alienantes da sociedade como um todo, mas também por nossos processos particulares, tecidos a partir dos traumas, repressões, desilusões e fixações!

Este é um convite para corajosos, ou pelo menos quem sabe, um convite para os medrosos que aceitam deixar de ser covardes para realizar um mergulho tão desafiador em sua história pessoal e na história de suas próprias tradições. 

O caminho como pudemos ver através da Daigo é árduo, sofrido, desagradável, por vezes repulsivo, mas o resultado é grandioso, pois afinal o que pode ser mais belo que reencontrar sua própria essência perdida e assim reconhecer o sentido mais profundo se sua existência, seu sentido de vida?

Desejo a mim e a você a intrepidez necessária para nos lançarmos a cada dia nesta busca!

Márcia Christovam Rocha