ANÁLISE DO FILME DUAS VIDAS

Por: Márcia Christovam Rocha

O título deste filme já é, em si, interessante, pois nos leva a pensar em uma incrível possibilidade: poder escolher entre uma vida e outra!

Que extraordinário seria podermos voltar no tempo, enxergar nossos erros e corrigi-los de tal forma a mudar o destino, reescrever nossa história, endireitar as coisas e seguir um rumo melhor, mais bonito, mais desejável, mais acertado, mais saudável…

Bem, esse sim é um sonho incrível! Mas quem disse que ele não pode se realizar?

Pense nisso! Que tal a possibilidade de escolher entre duas vidas? Olhar, analisar e simplesmente escolher a vida que lhe dará mais felicidade e mais saúde? Essa é a proposta desta comédia infantil, na que um homem adulto, ferido e rígido encontra sua doce criança, também ferida e confusa! Trata-se de um cruzamento onde as linhas tempo/espaço, passado/presente/futuro se encontram, permitindo a louca intersecção entre três diferentes momentos da vida de um único indivíduo.

Comecemos daí nossa viagem também maluca e paremos para pensar e perceber quantas vezes já nos deparamos com um déjà vu, com aquela incômoda sensação de que o filme está se repetindo! Não seria esse um momento mágico onde a intersecção tempo/espaço se dá como uma chance real de repensarmos nossa vida e nosso destino? Quantas vezes somos visitados em sonhos por nossos fantasmas mais amedrontadores, pelos inimigos mais vis de nossa infância remota? Quantas vezes vemos projetados em pessoas que hoje esbarram em nós, aqueles personagens que foram tão incômodos um dia? Tantas vezes nossa criança se posiciona diante de nós vestida de roupagem moderna (o filho do vizinho, o personagem do filme…), mas cujo drama nos chama para uma realidade já duramente experimentada no passado!

E quando tais coincidências ocorrem o que você faz? Encara a situação e tenta descobrir o que ela tem a lhe dizer, ou sai correndo desesperado por tanto medo de entrar em contato com sua dor, com feridas que há muito tenta esquecer? E então nega, veementemente nega, que algo desse ocorrido ou desse encontro queira lhe dizer qualquer coisa sobre si mesmo?!

Quem dera se nesse encontro com nosso passado fôssemos sempre tão inexoravelmente puxados para nossas verdades como ocorre neste filme com o personagem Russ Duritz. Assim não teríamos como evitar que os complexos ocultos em nossa sombra viessem à tona, mas também não teríamos como evitar que um novo destino se descortinasse diante de nós, propondo-nos novas possibilidades com indicadores de mais felicidade e mais saúde física, psíquica e espiritual.

É interessante perceber o personagem, bem no início do filme, mostrando-se como um homem endurecido, frio, rígido, como um plástico. As couraças criadas a fim de evitar-se a dor psicológica podem tornar um indivíduo assim. Na verdade, o mundo está cheio de gente plástica, falsa, moldada para atender a demandas externas, mas muito distanciada de suas verdades mais profundas!

A rigidez é sempre fruto do drama não resolvido, do trauma não ressignificado, do que não compreendemos, daquilo com o qual não conseguimos lidar.

Sempre que nossa pele se fere, as células reconstrutoras se juntam em torno do buraco aberto pela ferida numa tarefa persistente de reconstruir, de tampar, de cicatrizar e preservar a vida. Mas, muitas vezes, devido ao tamanho do ferimento, essa cicatrização não se dá de forma perfeita, gerando uma pele dura, rígida em torno do local afetado. Nesse caso, evita-se a morte, conserva-se o órgão, impedindo um dano provavelmente maior. Entretanto, perde-se em elasticidade, em maleabilidade, em flexibilidade, e também se perde na estética, na beleza.

Podemos comparar essa pele áspera, rígida com a severidade e a austeridade psíquica do indivíduo ferido emocionalmente. A fim de se recuperar da ferida experimentada na alma, cria-se uma cicatriz que enrijece, encouraça, engessa o indivíduo. Neste sentido, podemos pensar que toda rigidez nasce sempre de uma ferida profunda, doída e de difícil cura.

Para nosso personagem, a ferida profunda envolve a perda da mãe, associada ao sentimento de culpa. Ele se acredita, de alguma forma, responsável por essa tragédia. Sem elementos psíquicos que pudessem ajudar na compreensão e elaboração daquele luto, ele neurotiza.

Todas as vezes que uma situação traumática não é superada, cria em torno de si uma energia que se condensa e como está, condensada, tensa, e intensa, é armazenada em nosso mundo psíquico profundo, em um espaço de difícil acesso: o inconsciente. Lá, nesse lugar escuro, nosso dossiê é guardado, às vezes retido, e toda energia impregnada nele se lança para novos investimentos, quer em projetos de vida, quer em projetos de morte!

Uma vez que o indivíduo perdeu o contato com a sua história, deixou de ter ciência sobre seu dossiê, também perde a capacidade de fazer as conexões causais entre os afetos antigos e os sintomas do presente.

Isto é justamente o que acontece com Russ, uma vez que não sabe por que tem os sintomas: tic no olho e alucinação. Tampouco Russ desconfia que sua forma de ver o mundo e de lidar com as pessoas, ou até mesmo a profissão que escolheu são posturas tão intimamente ligadas às suas feridas do passado.

O indivíduo que está desapropriado de sua história não é capaz de reconhecer suas dores e fica, assim, à deriva, nem mesmo percebe que os ventos advindos de sua sombra são quem o conduzem em suas escolhas e em seus caminhos. Eis o protótipo do indivíduo moderno: aquele que conhece tanto sobre os processos externos, torna-se profundo especialista em tantas ciências, mas desconhece e ignora suas próprias verdades. Esta é a verdadeira alienação propiciadora das doenças da modernidade.

Vivemos em uma sociedade que nos chama para as imagens, que supervaloriza o externo, e eis que nosso personagem é justamente um Consultor de Imagem. Mas sua profissão também revela a trama de seus traumas, a necessidade de esconder, ocultar, de mentir sobre si mesmo. Sua criança compreende intuitivamente essa dinâmica ao interpretar e descrever de forma tão brilhante sua futura atuação profissional: Já entendi do que a gente trabalha! Você ajuda as pessoas a mentirem sobre quem elas são, e então elas mentem pra outras pessoas que acreditam que são o que não são! – Que trabalho triste!!!

Então o menino que vivia com medo de dar mancadas gera um adulto que, mesmo sendo um sucesso aos olhos da sociedade (vejam que ele é procurado sempre por grandes figuras do meio político, artístico, esportivo, e estes confiam plenamente no sucesso de sua atuação profissional, em sua capacidade!), continua com um medo tremendo de ser um fracasso. Mas, já que sua rigidez não o permite envergar o suficiente para olhar pra esta dor, resta-lhe MENTIR.

É interessante nos lembrarmos do ditado sempre repetido por nossos pais: Mentira tem perna curta. Esta frase sempre soava em nossa infância como a proposta de uma praga ou de um castigo, gerando a sensação de que não importa o que fizéssemos para esconder nossos delitos, seríamos, em algum momento, descobertos e punidos!

Psicologicamente, esse ditado também é verdadeiro, mas, neste caso, trata-se não de uma maldição, mas sim de uma bênção! Todas as verdades camufladas sempre tentam vir à tona. Os conteúdos escondidos na sombra tentam emergir e o fazem de diversas formas, assim o indivíduo não pode mentir uma vida inteira sobre quem de fato é, sobre seus sentimentos ou sobre suas dores.

No início do filme, a visita do pai chama atenção, pois este convida o filho para ajudar na mudança. Ele quer que Russ venha à velha casa para olhar o porão e verificar se não quer algo de lá. Naturalmente Russ se nega, fugindo do possível contato com seu passado.

Interessantíssimo esse convite para revirar o porão! Qual foi a última vez que você o fez? Quando olhou pela última vez suas fotos antigas? Quando visitou o bairro onde passou a infância, tentando reconhecer os espaços de outrora? Quando assistiu de novo a um programa, ou a um artista do qual era muito fã? Qual foi a última vez que se reuniu com a família para contar antigas histórias vividas por vocês? Qual foi a última vez que escreveu um memorial sobre um período qualquer de seu passado? Quando foi que confessou dores antigas a um amigo ou a um terapeuta? Estas são algumas possíveis formas de entrarmos em nosso porão e reviramos nossas preciosidades e nosso lixo ali depositados!

Bem… Se mentira tem perna curta, então tomara que, quando chamados para adentrarmos nosso porão, tenhamos suficiente coragem para fazê-lo! É lógico que dá medo, pois lá habitam morcegos, aranhas, ratos, e talvez até fantasmas! Mas é aí mesmo que podemos encontrar também nossos tesouros mais preciosos, nossas verdades perdidas! No porão sempre tem um grande espelho em que poderemos nos ver de corpo inteiro e, por que não dizer, de corpo e alma?

Mas o Russ… bem, este nosso personagem não facilitou as coisas, ele não aceitou o convite para investigar seu porão! Lógico, já que inclusive tempo é dinheiro, ele não pôde dispor do seu precioso e caro tempo para tarefas assim tão ordinárias, medíocres, sem valor!

Será que você já usou desculpas parecidas?

Mas verdade é que, quanto mais fugimos de nós mesmos, mais nossas verdades nos perseguem. Neste filme, isso se dá pela presença irritante e inevitável da criança Rusty, que chega para anunciar que há algo a ser revisto, relembrado, aprendido e finalmente superado!

Outro aspecto da fuga do confronto com as dores pode ser percebido quando Russ busca a Psicóloga e não quer sua hora de 50 minutos, pois lhe basta 5 minutos, apenas o tempo de pegar uma receita de um remédio bem potente, que será comprado a caminho do trabalho.

Essa é a cara do homem moderno, que vive correndo em função de seus compromissos profissionais, familiares, sociais, e não pode parar para si mesmo. Os 50 minutos da psicoterapia representam um momento de parada para olhar pra si mesmo, um momento do indivíduo doado somente para si! Mas, da forma como está constituída nossa agenda diária, a idéia de Parar é inaceitável, parece tempo perdido. Ficamos com medo de cair ou de sermos expulsos dessa roda frenética caso paremos por 50 minutos, mesmo que uma vez por semana!

E ele não quer seus 50 minutos, assim como não quer se sentar pra falar de seus problemas!

Sentar representa se entregar, se permitir! Têm pacientes que sentam na pontinha da cadeira no consultório e não desgrudam os olhos do relógio pra não correrem o risco de ficar sequer um segundo a mais naquela situação desconfortável! Jamais se entregam nem na relação psicoterapêutica nem nas demais relações que vivem. Isto é triste!

Russ só quer o potente remédio que fará desaparecer seu incômodo, que no caso é o que ele chama de alucinação!

Mas não é este o maior desejo da maioria de nós? Um comprimido mágico, poderoso pra fazer desaparecer tudo que incomoda!

Isto é tão real que não nos permitimos mais sequer sentir tristeza, pois este que é um sentimento tão básico e natural da nossa humanidade é, de pronto, interpretado como sintoma de depressão e lá vai a droga da alegria alienante! Alguns pacientes meus já tiveram a criativa idéia de que fluoxetina deveria ser distribuída diretamente na água da cidade, assim como outros componentes nela colocados, a exemplo do cloro! Já pensou que beleza? Entretanto, nesta equação da alegria perene, fica esquecido que são as tristezas e as turbulências as verdadeiras responsáveis por nosso crescimento e amadurecimento!

Não suportamos a dor, o erro, o incompleto, o sofrimento, o feio… Tudo que não se encaixa na proposta do social e esteticamente aceitável é repelido com veemência.

Assim, Russ repreende qualquer ideia de fragilidade, não a suportando em si ou nos outros. Eis uma verdade profunda: Se algo no outro te incomoda demais, desconfie, tem conteúdo seu ali!

Em várias cenas, o personagem principal recrimina o choro do outro. Ele não suporta que alguém demonstre qualquer afeto que denote, de acordo com sua compreensão de mundo, um tipo de fraqueza (admirar a lua, chorar…). Na verdade, ele não aceita sua própria fragilidade, e como isso é terrível, pois não aceitar nossa fragilidade equivale a não aceitar nossa humanidade, afinal o ser humano é, em sua essência, um ser frágil! Só compreendendo e aceitando minhas fragilidades posso construir recursos saudáveis de superação.

Vale pontuar a origem desta não aceitação, que é também a origem do tic nos olhos ou, como ele próprio denomina, um problema de olhos secos. Diante de um momento de grande sofrimento (a mãe está quase morrendo), o pai o impede de expressar seus sentimentos de medo, sofrimento, fragilidade. O pai lhe enxuga as lágrimas (olhos secos) e o proíbe de chorar. Esse é o momento original, quando Russ aprende que sentimentos não devem ser demonstrados e se torna, a partir de então, cada vez mais especialista em não denotar afeto, muito menos àqueles que mostram sua fragilidade.

Este é um ponto muito rico deste filme que pode descortinar, em nossas próprias histórias, essas experiências de repressão, momentos a partir dos quais ficaram embargados e empossados sentimentos tão profundos, cuja força hoje é potente para construir sintomas tão indesejáveis.

É preciso abrir as comportas, liberar, deixar fluir… Mesmo que tal decisão venha cheia de medo!

É linda a cena quando ele abraça sua criança e chora com ela. Ali, naquele momento ímpar, a cura acontece!

Só quando paramos de correr, de fugir, é que se inaugura a possibilidade de algo grandioso acontecer. Então, nesse momento, nossa vida pode mudar de uma forma maravilhosa e os sonhos outrora inimagináveis (casar-se, ter um cachorro, ser aviador…) podem ser relembrados para enfim se tornarem projetos plausíveis, nos quais a felicidade, a plenitude e a saúde tenham lugar, e onde nosso Self tenha voz e vez!

Bem… Grandes encontros esses propostos por este filme! Encontro com as verdades outrora esquecidas… Encontro com a dor, com os traumas, mas também encontro com as possibilidades, com os sonhos, com a cura!

Oxalá cada um de nós tenha esse encontro implacável com nossa criança interna e que, dessa trombada, apareça a possibilidade de uma segunda vida! Que seja assim…